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Concha Rousia

Saramago e Cela, ou como ser e não ser os meus prémios Nobel

13:03 13/07/2010

Aqueles que seguimos os caminhos da intuição, ou do saber tradicional, para descobrir o sentido das cousas... aquele saber que dá no corpo, como o ar do lobo, e que demora a ser entendido e assumido pola cabeça, por vezes descobrimos cousas que nos chocam. Foi daí que indo eu a caminho de Padrão, como tantas outras vezes, quando me achava a passar entre o prédio da Fundação Camilo José Cela e a cabeça de metal, que homenageia o escritor ao outro lado do caminho, que descobri o que eu já sabia. Devo, antes de mais, admitir que eu sempre olho de esguelho a cabeça de metal, tenho a escusa de ir guiando o carro, mas em verdade a razão é que não gosto de mirá-la muito porque a frialdade do metal misturada com a do gesto do Cela, sempre me arrepia; mas esse dia algo estranho aconteceu... 

Desta vez, sem pensar conscientemente onde é que estava exatamente, o nome de Saramago veio a meus beiços, senti uma mágoa e uma saudade imensas, havia dous dias que Saramago morrera e eu descobria que o queria perto, que o queria lembrar sempre. Dali em diante, durante o resto da viagem, eu ia para Ogrobe e até me enganei de caminho por ir entregada mais aos pensamentos do que a estrada, fui cavilando até tirar as minhas conclusões:

Por um lado temos o Cela que renunciou à nossa língua, e digo língua e não cultura porque eu encontrei sempre em tudo que dele li, o nosso mundo, embora estivesse entregado na língua de Castela. Eu por vezes tentei compreender isso; se Cela queria ser Nobel usou a opção que achou legítima para alcançá-lo, ora que talvez ser Nobel não foi o que o levou a trasladar o nosso mundo à língua dos nossos vizinhos castelhanos, mas a gente por vezes faz cousas que são incompreensíveis. Sempre me causou perplexidade a gente que renega, seja polo motivo que for.

Por outro lado, chegando a Portugal, estava o corpo de Saramago, morto que eu sentia que tinha que chorar como meu, e, de fato, chorei-o. Lembrei a primeira leitura dum livro dele; eu regressara havia pouco dos Estados Unidos de América, onde já descobrira que a minha fala era a mesma que a dos Angolanos, Moçambicanos, Brasileiros... mesmo os nossos sotaques sendo diversos. Ainda hoje me custa compreender como foi que fui descobrir isso em Carolina do Sul, depois de morar toda a minha vida a dez quilómetros de Montalegre, e a menos de Sendim. Mas, como já disse, o saber nem sempre chega antes polo pensamento, e foi assim que até à minha estadia nos EUA, eu não soube que sabia que a minha língua era a mesma língua que se falava em Portugal. Ajudou a este saber a descoberta de que os livros de Rosalia e Castelão estavam juntos com os de Miguel Torga e Pessoa. Mas a escrita seguia a ser diferente.

Foi com um livro de Saramago, foi com a Caverna, que eu vi a luz da escrita. O meu home lia para mim, e cansado de imitar o sotaque da gente de mais ao Sul disse-me: ‘eu vou ler à galega’... e isso foi uma revelação: Não apenas a minha fala era a mesma que a dos irmãos de língua falada, como já disse antes; com Saramago vinha de descobrir que a língua escrita também era a mesma... Lembro que me emocionei; Saramago, sem mesmo ele o saber, devolvia-me a língua escrita, uma escrita cultivada e feita, mais feita também para a minha boca e a minha caneta. Foi também com Saramago que descobri (ou soube que sabia) que a língua que ele empregava fluía com o ritmo da língua do meu pensamento, uma sensação maravilhosamente nova na minha vida de leitora, e foi também na sua escrita que muitas palavras e expressões que adormeceram desde a infância, acordavam, também por ele levar dentro esse mundo ancestral que chegou vivo até mim. Uma descoberta tão completa e complexa que não se pode imaginar até que se vive.

E agora aqui estou eu, com dous prémios Nobel que são e não são meus. Um renegou de mim, não reconhecendo a língua da nossa cultura, a língua da cultura que ele usava para criar a sua obra, ignorando-a, renegando dela, ao tempo que dela se servia... O outro não me é reconhecido, e inclusive me é negado, nada adianta que eu o saiba, na forma mais profunda de saber, meu.

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Concha Rousia

Concha Rousia nasceu em 1962 em Covas, uma pequena aldeia no sul da Galiza. É psicoterapeuta na comarca de Compostela. No 2004 ganhou o Prémio de Narrativa do Concelho de Marim. Tem publicado poemas e relatos em diversas revistas galegas como Agália ou A Folha da Fouce. Fez parte da equipa fundadora da revista cultural "A Regueifa". Colabora em diversos jornais galegos. O seu primeiro romance As sete fontes, foi publicado em formato e-book pola editora digital portuguesa ArcosOnline. Recentemente, em 2006, ganhou o Certame Literário Feminista do Condado. »



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